Esta tarde lembrei-me dos tempos em que comecei a ler poesia. Apesar de sempre ter gostado de ler, a poesia nunca foi algo que apreciasse.
Depois, aos 15 anos, com um estudo intensivo da mesma devido ao famoso Português A que, comparado com o triste Português B (não me levem a mal o adjectivo), era Literatura pura, aprendi que existe um mundo bem mais profundo na poesia.
Ainda assim, cantigas de Amigo, Amor ou Escárnio nunca foram as minhas favoritas e, enquanto folheava o livro de Português A mais para a frente (um hábito que tinha com todos os outros livros da escola) encontrei um poema que me fez começar a ler e a apreciar poesia.
Revi-me nesse poema se bem que muitos adultos diriam e dirão, certamente, que todos os adolescentes sentem uma grande afinidade por ele. Contudo, ainda hoje me vejo nessas palavras.
Às vezes pergunto-me porque é que tanta gente tenta dizer aos outros como devem viver a prórpia vida. Nunca entendi. Nomeadamente, nunca percebi porque é que tanta gente me tenta dizer o que devo ou tenho de fazer. Até porque, quem me conhece bem sabe, acabo sempre por não fazê-lo. Sempre fiz como me deu na telha, perdoem a expressão. Aliás, muitas vezes fazia exactamente o contrário só para mostrar que não preciso de bússolas falantes.
Sei o que quero.
José Régio
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
Myself